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Polifonia Travesti

A voz da Conceição Evaristo no rap Corpo Sem Juízo da Jup do Bairro me estremece a alma. À medida que vou ouvindo o relato daquela mãe, vou me afligindo, porque a narrativa vai me anunciando uma tragédia humana que, de fato, se concretiza: a mãe, que aguardava a filha que lhe prometera uma visita em breve, se depara com essa mesma filha morta... ali, diante de seus olhos salivantes de saudade, “sentinela de um corpo assassinado”, “um corpo que fora transformado em outro corpo” estava agora estendido em pleno chão sem vida. “Quem matou a minha menina?”, a mãe se pergunta, encontrando respostas em forma de outras perguntas: “O pai? Eu? Vocês?”. Uma história tantas vezes repetida num Brasil que tem na violência uma de suas principais características, camuflada por um discurso de país pacífico, povo hospitaleiro, cultura diversa. O Brasil é brutal! Daí o rap da Jup do Bairro — favelada-negra-travesti, humana fora dos padrões elitistas-brancos-patriarcais-cisheteronormativos —, que refletindo sobre a violência, na verdade, escancara as possibilidades de um corpo sem juízo. Penso, penso, penso... em arte, educação, estatísticas, nas realidades social, política e econômica brasileiras e constato: não pode ser a morte matada e precoce, portanto, o destino unilateral desses corpos sem juízo! “Corpos sem juízos que não querem o paraíso” têm por essência a potência da criação. É isso! O entendimento de que vidas trans e travestis são potências múltiplas é urgente; fontes inesgotáveis de arte, de experiências transgressoras que nos levam a transmutações, fricções, deslocamentos, até mesmo a fissuras necessárias à ascensão de seus corpos e intelectos e à ocupação de seus lugares devidos. Todo poder às vozes e às trajetórias trans e travestis! Assim, o programa Polifonia Travesti foi pensado para compor a Mostra Sertão Mundo, da III Semana de Humanidades do Campus Ouricuri. Esse diálogo entre artistas travestis e suas produções com a educação básica é pulsação que leva pessoas e instituições a saírem de seus lugares estabelecidos, confortáveis e colonizadores para acessarem mundos que têm muito a nos dizer sobre as inúmeras formas de existir e de se relacionar. A curadoria desse programa Polifonia Travesti foi feita por mim, Prof. Juliano Varela, e pelo aluno egresso do Campus Ouricuri, João Matheus Alves. Os trabalhos são de mulheres artistas travestis de Pernambuco e da Bahia: Processo Faminta, de Núbia Kalumbi, apresenta a fome como realidade do corpo negro na busca pela cura dessas ausências; Feitiço para ser uma boa mãe, de Oraci Terra, exibe fases da vida de travestis negras “em corpos ditos impuros”, que pagam o preço de “parir por aí mesmo sem ventre”; Tornar-se monstra ou humana?, de Catarina Almanova, impacta pela visualidade e pela reflexão sobre o processo de construção social “das corpas TRANS-possíveis” num mundo regido por um “CIStema armadilhado contra humanas que tomaram a liberdade de EXISTIR”; Travessia, de Killauea, é uma erupção-denúncia, um grito que expele o magma da terra contra a morte de mulheres travestis, morte alimentada pela hipocrisia de uma masculinidade tóxica e desprezível, que consome a prostituição travesti de noite, mas de dia “só quer rir delas”; e Lamento de Força Travesti, prece-invasão de Renna Costa, que nos arrebata aos céus do Sertão sem nos tirar do chão, terra que nos rega, soco-afago no coração, é de dia e de noite, a travesti a lutar para se livrar do caixão. Cada uma de seu território, essas artistas falam algo indispensável ao Brasil, delineando uma verdadeira Polifonia Travesti. O que une todos esses trabalhos e todas essas mulheres travestis incríveis? A contestação da violência que seus corpos sem juízo vivenciam cotidianamente e também a certeza inexorável de que elas vão continuar vivendo, mulheres, potentes e criadoras de um mundo indiscutivelmente melhor de se viver para todas as pessoas.

Prof. Juliano Varela

Processo Faminta, de Núbia Kalumbi (Senhor do Bonfim - BA)


Para todas as bocas secas de espera, que engolem a seco a urgência de uma cura. A fome atravessa  a construção de uma identidade negra, tanto a fome física quanto se pensarmos a mesma num campo mais metafórico. A urgência do processo não é para achar a resposta de onde se encontra o alimento, a locomoção da obra se dá pelo estágio físico provocado por essas ausências. Fome: num local com algumas árvores ao redor, um corpo é amarrado por várias cordas grossas e ásperas que imobiliza seu corpo, que tenta uma locomoção em tempo pausado. Um Corpo coberto por uma tinta vermelha se movimenta num campo de terra batida fazendo uma composição raivosa com a terra que sobe. Comida: em meio às águas, a mesma figura de vermelho aparece, buscando com movimentos calmos e uma imagem menos intensa e mais fluída como água.

Núbia Kalumbi é uma preta travesti, atriz, performer, graduanda de Licenciatura em Teatro pela Uneb Campus VII (Senhor do Bonfim-BA). É pesquisadora de Teatro e Performance como instrumentos interseccionados de construção subjetiva, política e estética.

Feitiço para ser uma boa mãe, de Oraci Terra (Petrolina - PE)

É manifestação em maldição visual de travesti. A amarelinha, brincadeira infantil cujo jogo consiste em equilibrar-se e avançar estrategicamente, tem como meta chegar a um outro lado. Céu e Inferno ou Céu e Terra, Vida e Morte, saltos e equilíbrio... metade do caminho. Na vida da travesti: 1. encontro de mim, criança só. Perda de mim mesma: sozinha e eu? 2. Reencontro... agora estou prenha e dessa vez não vou abortar. 3. E o agora? Amor? Trabalho não? Consolação? Proteção? Proteção? Proteção? Maldição!

Oraci Terra é estudante do curso de licenciatura em Teatro na UNEB - CAMPUS VII (Senhor do Bonfim-BA). Residente em Petrolina-PE, Oraci transita e se renova, tal como serpente que troca couro ou desliza por cima de toda matéria, nas diversas áreas da arte, no que diz respeito ao teatro, ao canto, às artes visuais e, principalmente, à poesia. Pensando primariamente  a ancestralidade e culturas afro-indígenas enquanto matéria prima para tudo que venha se nominar “potência”. Oraci desenvolve pesquisas que deságuam em corpos visuais que abordam cura, sagrado travesti e macumba. Principalmente, além de pensar a morte, pensar também a boa vida.

 

Tornar-se monstra ou humana?, de Catarina Almanova (Recife - PE) 

Como insurgir diante dos olhares atravessados que encontramos nas ruas? Até quando iremos sangrar? De que forma lidamos com o desassossego dos outros projetados injustamente em nós? Como se desfazer das frases violentas que invadem a carne e tentam romper com nossas Almas? “Tornar-se Monstra ou Humana?” é um curta/videoarte que busca refletir sobre criar caminhos para que nós, corpas TRANS-possíveis, existam. É sobre entender os processos de desumanização, aos quais estamos constantemente submetidas, de forma visceral, navegando o íntimo dessas inquietações por meio do sonho, pesadelo, encantamento e desejo de vida. É uma investigação de presságios, mundos habitáveis, sobre uma necessidade de reação contra um CIStema que está armadilhado para humanas que tomaram a liberdade de EXISTIR.

Catarina Almanova é uma atriz, performer, roteirista, diretora e poetisa. Desde 2016, investiga possibilidades de transmutação da sua vivência no país que mais assassina pessoas trans, pessoas como ela. Dentro de sua obra, pesquisa formas de existir e vibrar dentro deste território, passando pelo surrealismo, fantasia e expressionismo para iluminar caminhos possíveis de vida e romper com o CIS-tema.

 

Travessia, de Killauea (Petrolina - PE) 

Travessia é um clipe produzido através da força e vontade de Killauea de deixar explícita a Transfobia e o quão forte as travestis e mulheres trans precisam ser para sobreviverem em uma sociedade tão caótica que nos matam por sermos apenas quem somos. Travessia é a demonstração do poder que é ser travesti, pois uma vez que você é travesti está quebrando todos os estereótipos impostos por essa sociedade. Os mesmos que buscam nossos serviços através de suas masculinidades frágeis nos ceifam a vida. Travessia é uma demonstração de que basta, que chegou a hora de revidarmos. É mostrar que nossa vingança é envelhecer e sobreviver, somos a continuação de todas que tiveram suas vidas tomadas, mas vinhemos para romper esse ciclo de mortes contínuas. Travessia é a demonstração do poder e impacto que a travestilidade em sua essência transmite.

Killauea é uma rapper que começou a compor seus primeiros versos aos 14 anos de idade. Nascida em periferia, manifesta toda sua força através de rimas e expande, cada vez mais, essa força resistência travesti. Diretora, compositora, roteirista, produtora, Killauea mostra que para a arte não há limites nem distinções para ser quem se é.

Lamento de força travesti, de Renna Costa (Buíque - PE)

Qual o seu sonho?  Como você se imagina daqui há 10 anos? Ser uma corpa trans e travesti no Brasil é um ato de resistência diária, estar viva e se permitir sonhar é preciso. Em um sertão futurista, um bando de travestis criam seu próprio reduto na caatinga. Do barro, (re)criam suas corpas-territórios, evocam da força do fogo suas ancestralidades, celebram as suas existências e sonham.

 

Renna Costa é transartivista, brincante e produtora cultural. RENNA evoca através da performance, da música, da poesia e do audiovisual (re)construir sua ancestralidade travesty. Denúncia, desejos e afetos atravecam por seu corpo num ato de re-existir em arte para rennascer em rito. 

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